terça-feira, setembro 25, 2007

O bilhete

Colocou o colar de pérola sobre a blusa preta. Andou alguns passos e parou na frente do espelho. Recordou as inúmeras vezes que o marido vinha por trás dela abotoando-lhe o vestido, fechando o zíper da blusa, ajeitando-lhe o decote, ou apenas dava-lhe beijinhos atrás da nuca. Inúmeras lembranças percorreram-lhe a memória. Até que ouviu a filha bater na porta e perguntar : “Mamãe você está bem ? “Estou”, respondeu laconicamente, redargüida pela filha que lhe disse “Apresse-se, senão vamos chegar atrasadas à capela.
O velório transcorreu normalmente, como qualquer cerimônia fúnebre. Muitas lágrimas, recordações de várias histórias que os presentes viveram com o falecido, encontros de parentes e amigos que não se viam há muito. Somado a isso tudo, a grande dor daquela senhora que permaneceu calada até o fim do cortejo. Balbuciava algumas vezes um obrigado , que perdia a força quando a língua tocava os dentes e saía como um chiado.
Passado as horas, seguiram todos ao cemitério para a mórbida cerimônia de enterro, que realmente nada mais é que um típico masoquismo cristão, primeiro por carregar um caixão que é uma “mala”, e muitas vezes “sem alça”, quando o morto é gordo, tire de exemplo o “grande” Tim Maia . Ainda pior o ritual de abrir o caixão para que todos os amigos e parentes possam olhar novamente para o semblante do falecido, que por muitas vezes, após a morte, possa até estar desfigurado. Neste caso, a viúva confidenciou a uma parente próxima que nunca mais havia visto o marido tão bonito.
Encerradas desgastantes cerimônias. A velha senhora foi levada para casa pelos filhos. Sentou na velha poltrona na sala em frente ao aparelho de televisão. Olhou ao redor e avistou na mesinha ao lado da poltrona uma caneta sem tampa, uma tesourinha de unha e um jogo da Sena, feito mais não pago. Um raio de lucidez veio-lhe a mente, que a fez perguntar o dia da semana ao filho ao lado, que respondeu “Hoje é quarta-feira. Há alguma problema mamãe ?”. “Não” ela respondeu, com semblante pensativo. Fechando a mão que guardava o jogo não apostado.
Sedada de remédios não demorou a adormecer. Na manhã seguinte, foi a primeira acordar e andava apreensiva de um lado para ao outro do apartamento, com as mãos cerradas. Aguardando o resultado do Jogo da Sena, que sairia logo à tardinha, como se já adivinhasse seus números. Não foi outro, todos os números que a velha senhora apostara durante quase vinte anos todas as terças-feiras, estavam sendo repetidos pelo radialista, e incessantemente por sua mente. Começou a quebrar objetos e gritar pelo apartamento :
“ Desgraçado, infeliz , finalmente você morreu.”
Os filhos atônitos pensaram que havia surtado. Incompreendendo tal reação chamaram a ambulância , para que internassem a velha senhora.
No caminho do hospital, parecendo conformada, contou ao enfermeiro a seguinte história :
“Meus filhos não me entendem , por que tive este esdrúxulo desabafo, pois não sabem eles que todas as vezes que tivera oportunidade de melhorar de vida, o falecido me atrapalhava. A primeira vez foi quando nas vésperas de conhecer um parente rico, que havia se apaixonado por minha fotografia, conheci o falecido na loja de sapatos da esquina , e por quem logo me apaixonei. Na segunda vez quando a companhia de dança da qual eu fazia parte, foi fazer uma turnê pela Europa , o falecido sofreu um grave acidente de carro o que me fez desistir da viagem e ficar ao lado do marido. E depois disso a dança passou a ser um segundo plano, já que tinha o primeiro rebento nos braços com quilos a mais, graças as cervejas pretas trazidas e os caldinhos de cana que o meu desgraçado e morto marido me trazia, com a esfarrapada desculpa de me fazer ter ainda mais leite materno , mais hoje eu sei o filha da mãe queria era me ver gorda e feia para que nenhum homem me olhasse, devido ao seu excessivo ciúme, e conseguiu , pois desde o primeiro, depois segundo e terceiro filho meu corpo de bailarina nunca mais foi o mesmo. E agora essa justamente no dia em todos meus números saem sorteados o desgraçado tinha que morrer, fazendo-me esquecer de jogar.”“ Desgraçado !!!!_ esbravejava a inconformada senhora, ainda no corredor do hospital, acompanhada por um sorriso cúmplice do confidente enfermeiro.

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