sábado, fevereiro 03, 2007

Marlene

O galo cantava , às cinco da manhã, Marlene levantava. Fazia o café , com o resto de pó que ainda tinha e tomava. Arrumava trouxa de roupa e seguia sua caminhada de quase cinco quilômetros até a beira do rio, que com a seca de meses sem chover também ia secando.

Lavava a sua roupa e do marido e da vizinhança que trabalhava na roça . Torcia , espremia as roupas e as colocava na grama até que elas secassem . Todo dia , durante anos ela fazia isso , ganhando seis reais , por semana, ao todo vinte e quatro reais no mês. O que ajudava o marido nas despesas da casa. Agora sem as crianças que já estavam grandes.

A filha trabalhava na casa de família, como empregada doméstica , na capital , há quinhentos quilômetros do seu pequeno vilarejo. O mais velho , quase não dava notícias , desde que partira , num caminhão de bóias frias , para São Paulo. E quando mandava cartas , já sabia que era para dizer , que mais um netinho tinha nascido. Marlene já tinha quatro, mas só os conhecia por foto. O filho sempre prometia que um dia , ia lhe mandar buscar para conhecer a família. Ela esperava ansiosa e seu José o marido ria dos sonhos da mulher.

Marlene tinha tido cinco filhos, dois haviam morrido ainda pequenos, um ela tinha dado para uma mulher de um fazendeiro, que não podia ter filhos. A seca na época , os deixava quase sem comer e ela não via outra alternativa. Vira e volta pensava no Chiquinho, assim ela o chamava e o imaginava alimentado, letrado e bonito e quem sabe um dia , voltasse para conhecer os pais verdadeiros e seu José , mas um vez ria dos sonhos da mulher.

Depois do dia cansativo do trabalho e após preparar a janta do marido. Marlene ligava o radinho de pilha e procurava a estação que estivesse tocando alguma música de Roberto Carlos. E deliciava-se com as melodias românticas do Rei.

Recordava as festas no arraial do Seu Severino, foi onde conheceu seu José, já no final da noite. Tocava a música Cavalgada, quando ele lhe chamou para dançar. Ainda novo , já possuía o bigode, mas era bem apessoado, tinha aprendido a ler e escrever , com uma tia professora , era considerado um bom partido pela família.

O noivado e casamento não tardaram a acontecer . José era tão sonhador como ela, mas os filhos foram nascendo e o olhar cheio de brilho de quem acalentava uma vida melhor, foram escurecendo e José é conformado com a vida que leva, esquecendo todos os planos que traçara , preocupado sempre na sobrevivência da família.

A dança de todo o sábado foi substituída , pela pinga com o vizinho ao lado ou ouvir radinho de Marlene que se tocava Roberto Carlos, que cada vez que ouvia a voz do cantor suspirava como uma adolescente romântica, sonhando com aquele amor , que nunca tiveram.

Passava as noites, a sonhar de um dia conhecer Roberto Carlos. Ir a um dos seus shows. Contava a todos que um dia ia a cidade finalmente assistir o show do ídolo e seu José sempre ria dos sonhos da mulher.

Teimosa, como uma mula, como também dizia seu José, passou a juntar o pouco dinheiro , que ganhava para conseguir conhecer o ídolo, ouvir suas melodias de perto. Colecionava revistas e jornais que a filha lhe mandava da capital. Pregava fotos e pôsteres pela casa toda . Olhava para eles todas as noites e pedia ao Padre Cícero, que lhe concedesse essa graça. E seu José ria dos sonhos da mulher.

No dia , que estava perto de conseguir , já tinha comprado passagem e tudo para capital . Seu José adoeceu e seu dinheiro foi todos em remédios, para a melhora do marido. Chorou noites a fio, as vizinhas pensavam que era pela doença do marido. Quando o marido melhorou , ela novamente começou a juntar novamente o dinheirinho para realizar seu sonho, seu José continuava a rir do sonho da mulher.

Passaram-se anos e novamente Marlene tinha o dinheiro da passagem, mas veio uma das piores secas , já vistas e a comida e água iam se acabando e seu José já não era tão jovem e não aguentava pegar na enxada por muitas horas. E mais uma vez o dinheiro serviu para comprar comida para os dois.

Persistente , Marlene não desistia e novamente começou a juntar o dinheirinho, por semana eram centavos, que ela escondia dentro do sutiã rasgado, embrulhado num papel velho, para o marido não saber. E seu José fingindo não saber ria dos sonhos da mulher.

Certo dia , recebeu uma carta da filha que conseguira um emprego de recepcionista , num laboratório e passara a ganhar um pouco melhor e lhe prometera que no dia que o cantor viesse a capital , pagaria para a mãe vir assisti-lo.

O grande dia chegou , Marlene tirou do armário o vestido branco feito por ela , já amarelado pelo tempo, agradeceu ao seu padroeiro, pela graça finalmente conhecida. Despediu-se de seu José. Pegou o ônibus até a capital, também não conhecido por ela , que nunca saiu da cidadezinha onde nasceu. Chegou cansada , mas feliz. Foi recebida pela filha , com abraços e beijos.

Caminharam pela orla da capital. Marlene ficou encantada , quando viu o mar. Jogou-se de roupa e tudo e quase morreu afogada. Depois foi casa da filha , vestiu o vestido branco. Sentia-se uma adolescente que vai a primeira festa . Ficou horas na fila , da casa de espetáculo ansiosa para entrar, seu coração palpitava forte.

Passou aperto , pela multidão para chegar próximo ao palco , onde seu ídolo iria tocar . O suor corria pelo seu corpo, deixando transparente o vestido, mas ela nem notava. O grande momento chegou e o Rei apareceu no palco. Marlene cantava junto com ele. Conseguiu pegar até uma das rosas arremessada para platéia. Chorava como uma criança de emoção. Lembrava de quando conheceu seu José , dançando Cavalgada. O suor aumentava , misturando-se as lágrimas. A Ave-Maria, cantada por todos foi a mais bonita de toda a sua vida. Olhava para o ídolo , gritava o seu nome , para que ele a reconhecesse. O show acabou, Marlene ficou inconformado, mas ele voltou para o bis e cantou “Emoções”, que forma tantas para ela , que o pobre coração de Marlene não suportou e ela foi desfalecendo , tentando gritar mais uma vez Roberto Carlos. Até trombar com a cabeça no chão. A notícia da morte de Marlene, foi dada a Seu José que apenas ria do sonho da mulher.

não tira

Esticou os braços e encontrou o travesseiro vazio, ao lado do corpo. Rolou de um lado para o outro na cama vazia , espreguiçou-se até tomar coragem de levantar. Fazia um silêncio na casa. . O marido saiu cedo para o trabalho. A empregada telefonou na véspera avisando que viria. Estava sozinha. Fazia tempo que isso não acontecia

Espreguiçou-se novamente . Procurou os chinelos , sempre ordenados do lado direito da cama. Levantou. Caminhou primeiro ao banheiro , depois da higiene matinal, andou pela casa. Olhou cada compartimento certificando-se , se não havia ninguém.

Não havia um único ruído. Nem barulho de carros se ouvia. Morava do décimo nono andar de um prédio de classe média na Zona Oeste da cidade. O silêncio era tanto , que tornou-se assustador, parecia que estava só no mundo. As vezes tinha esses pensamentos estranhos.

Resolveu abrir a janela da sala. O brisa do vento levantou seus cabelos. Olhou para o céu , examinando as nuvens. Primeiro viu um homem sentado, depois um cachorro correndo. Adorava brincar disso desde criança. Ficava horas sentada na janela olhando o céu. Achava que um dia poderia ver os anjos desenhando no céu. Nunca conseguiu.

Ficou frustrada quando descobriu que as nuvens não eram de algodão. E que não eram os anjos que faziam seus desenhos. Por um bom tempo relutou contra essa idéia. Mas a aulas de ciências lhe provaram o contrário.

O dia estava parcialmente coberto por nuvens, a temperatura elevada, com probabilidade de pancadas de chuvas durante o fim da tarde. Repetiu para si mesma ,como se fosse um locutor de televisão anunciando o tempo. Riu dela mesma.

Voltou a sala, olhou o maço de cigarro, jogado na mesa de canto. Dirigiu-se até ao maço. Tirou um cigarro de dentro. Pegou o isqueiro ao lado. Colocou o cigarro no canto da boca. Sentou no sofá ao lado e ficou algum tempo com o cigarro apagado na boca. Pensou o quanto é bom dar o primeiro trago do dia. Uma sensação indescrítivel, da fumaça tragada entrando no seu corpo e parecendo refrescar a mente. Depois soltá-la , como se tivesse soltando com ela seus problemas.

O cigarro continuava, pendurado apagado, no canto da boca , enquanto ela estava absorta em seus pensamentos. O telefone deu um toque e parou. Ela despertou do quase transe que se encontrava. Olhou para o telefone , nem mais um sinal. Passou a mão na barriga de quase cinco meses de gravidez e amassou o cigarro com toda força no cinzeiro, como tivesse fumado até o filtro.

Fumava desde os quinze anos. Nunca pensou em largar o vício. Mas nos últimos meses , tudo estava diferente, até as coisas mais banais, como uma velhinha atravessando a rua, a emocionava. O homem da esquina vendendo pamonha , que antes tanto a irritava, com seu berro , hoje era divertido. Tudo tinha um outro significado.

As pequenas coisas da casa que nunca a tinham incomodado , ora lhe cansavam , ora lhe davam náuseas , ora ela amava aqueles simples detalhes . Como a moldura do quadro quebrada, lembrava da caliente noite de amor que tivera com o marido , iniciada no hall do apartamento , onde estava pendurado o quadro atropelado pelo arroubo sexual do casal. A infiltração no teto da cozinha , que tanto lhe irritava , parecia um artefato decorativo e fazia parte daquele lar.

O seu rosto , mudara as rugas de expressão estavam mais acentuadas na testa, no contorno da boca e dos olhos. Seu corpo antes liso, sem celulite, estrias , hoje abrigava esses seres indesajáveis como costumava apelidar os males da vaidade feminina.

O seu corpo que antes era só seu, não era mais seu ou não era só seu ? Podia ficar horas ou até mesmo o dia inteiro pensando sobre diversas coisas. De repente, olhou para o relógio e lembrou que estava na hora de sair.

Entrou no chuveiro e deixou a água fria cair , no seu corpo . Sentia o seu frescor invadindo seus poros. Imaginou-se um peixe, que passa a vida inteira molhado. Ia começar um novo devaneio, mas viu que não tinha tempo.

Procurou alguma roupa confortável. Achou um vestido , que nem lembrava que tinha , fazia tanto tempo que não usava. Lembrou os tempos da faculdade de jornalismo, quando saia com as amigas , sem preocupação pelo pátio da faculdade, cheia de livros e porra nenhuma na cabeça, para tomar um chope no bar da esquina.

Pegou o primeiro táxi e entrou. O motorista perguntou o endereço e logo após ela responder tentou iniciar uma conversa, com ela sobre uma amenidade qualquer, como o clima, o trânsito. Ela fingiu não ouvir, sempre fazia isso quando não queria conversar. O taxista percebeu e continuou o caminho calado. Só ouvia o som de uma antiga canção da Elis Regina, que tocava no toca-fitas do carro. Foi assim até chegar ao local desejado por ela.

Entrou numa sala grande e clara com várias outras mulheres sentadas. Dirigiu-se a recepcionista do lugar, que lhe pediu que aguardasse a vez. Esperou meia hora até ser atendida, tentou ler algumas revistas espalhadas na mesa do centro , folheava-as com uma rapidez, que era óbvio que não estava lendo nada. Trocou-as diversas vezes. Até que alguém no microfone chamou pelo seu nome : Vera Castro.

Entrou numa saleta e retirou a roupa. Vestiu a bata branca aberta na frente e deitou-se na cama . Esperou ansiosa pela entrada de um homem de meia idade e simpático, que sorriu para ela, quando entrou. Ele sentou-se ao seu lado , lhe apertou as mãos e perguntou se ela estava bem. Ela respondeu ofegante que sim. Ele sacudiu a cabeça assertivamente. Pegou um tubo plástico , desses tipo de colocar mostrada e passou um gel gelado em sua barriga. Olhou atento para o aparelho de ultrassanografia, igual a uma televisão em preto e branco.

O coração dela acelerou. Ele disse para que ficasse calma, que estava tudo bem. Depois perguntou se ela gostaria de saber o sexo.

Ela quase respondeu, que era só para isso que estava ali. Ele sorriu. Sentiu-se uma idiota na frente daquele homem, com seu sorriso prepotente. Não podia demonstrar a sua irritação. Ele pediu que ela senta-se e se aproxima-se da tela. Moveu-se diante do aparelho e viu pela primeira vez o que seria o saco escrotal do bebê. As lágrimas correram os olhos , depois uma intensa gargalhada. Era o seu primeiro filho. O homem entendeu tudo. E pediu que ela deitasse novamente. Ele encostou por minutos o estetoscópio em sua barriga. Depois colocou no ouvido dela o aparelho para que ela ouvisse o coração do filho. Os dois sorriram. Ele explicou detalhes sobre o exame, peso, comprimento , baques do coração. Por uns instantes os dois eram íntimos. Principalmente, quando ele lhe disse em tom de brincadeira para que ela tomasse conta do peruzinho que tinha dentro dela.

Ela saiu do exame satisfeita. Caminhou por várias quadras. Olhava para tudo ao seu redor. Pensou um ligar para o marido, mas achou melhor fazer uma surpresa para o jantar. Viu dois meninos , brincando na calçada. Alisou várias e várias vezes sua barriga e imaginou o seu filho.

Parou na frente de uma vitrine de loja. Viu seu reflexo. Não se achava mais um sapo gordo, como vinha se imaginando nos últimos dias. Falou consigo mesma, diversas vezes. “ Serei mãe.” Achou bonita sua imagem refletida. Lembrou que agora tinha um peruzinho dentro dela.

A frase soava sucessivamente dentro da sua cabeça. “Tenho um peruzinho dentro de mim.” Olhou para os homens que passavam com desprezo. Perguntava-se , que nada era diferente deles , por que tinha também um pau dentro dela. Riu sozinha e continuou a caminhar até chegar em casa.

O marido a esperava ansioso. A abraçou várias vezes , quando ela disse que era menino. Vibrante ligou para toda família e gritava eufórico ao telefone que era procriador de um macho. Era sempre assim que terminava as ligações.

“Sou procriador de um macho.”

Beijou e acariciou a barriga da mulher e antes de repetir novamente a agora predileta frase , ela disse :

“ Mas quem tem o pau está dentro de mim, sou eu”

A barriga foi crescendo e a cada mês ela ia a clínica fazer a ultrassonografia. Pedia sempre para o médico mostrar o saco escrotal do feto . Admirava a si mesma e pensava :

“O pau dentro de mim também cresce.”

Saia da consulta radiante. Sentia-se completa, também tinha pau, o dia inteiro, todos os minutos e segundos de seus dias. Sentia crescer dentro dela aquele pau. E ele seria sempre dela.

Um dia , tirou a roupa e olhou-se nua na frente do espelho. Olhou seu corpo disforme pela barriga já grande. Tateou a barriga, tentou descobrir aonde estava o seu pau. Olhou para cima e viu seus seios grandes. Por meses havia esquecido que também era mulher. Quase enlouqueceu. Chorou por uma tarde inteira. O marido chegou do trabalho e a achou com lágrimas nos olhos e perguntou, se tinha acontecido alguma coisa.

Ela caiu em prantos. O marido atônito, não sabia o que fazer. Pegou o telefone, ia ligar para o hospital. Ela não respondia. Ele não iria entender. Foi assim até o final da gravidez. Ninguém entendia o motivo de sua tristeza. O marido achava que era a ansiedade do parto ou coisa parecida. A mãe dela preocupava-se com uma depressão pós parto não seria bom para criança.

O dia chegou. Ela dizia não querer ir ao hospital. Recusava-se entrar no carro. O marido chamou a ambulância. Ninguém a compreendia. Até que na sala de parto gritou para o médico :

“ Não tira , não tira.”

A sala de cirurgia parou para ouvir os gritos dela , que continuou :

“ Não tira o pau de dentro de mim.”

combinações de horrores

raiva, rancor, rabugice,
relação, relento, remorso
risada, rivalidade, rispidez
roubo, romper, romance
ruína, rudez e ruptura

Combinação de palavras
imaginação de sentimentos
variação de humores
espetáculo de horrores

sensações , calores , odores
desejos ardentes
paixões calientes
estações variadas

taquicardias
mãos suadas
secas secreções
obssesiva compulsão

veias opulantes
rompantes e estouros
rumores espalhados
faces molhadas

folhas ao vento
roupas jogadas
solitário relento
noites gélidas

combinaçãoes de horrores